Economia de Serviços

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O Novo Trans-Pacific Partnership (TPP)

Após anos de negociações, o TPP experimentou dramático colapso com a saída dos Estados Unidos do acordo logo após a posse do Presidente Trump. Mas como Fênix, o mais ambicioso acordo de comércio jamais negociado está renascendo das cinzas e deverá ser finalizado nos próximos meses. Agora, como CPTPP (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership). O acordo também tem sido chamado de TPP 11 em razão de seus 11, e não mais 12 membros originais.

O TPP 11 representa 15% da economia global e inclui economias importantes como Japão, Canadá, Austrália e México. Outros países já indicaram interesse de se juntar ao grupo, como Coreia do Sul, Taiwan, Tailândia, Indonésia e Filipinas. Estimativas do PIIE indicam que, com a entrada desses países, haverá ganho anual de comércio de US$ 500 bilhões, valor até maior que o esperado com os países do acordo original. Isto aconteceria em razão da criação de novas cadeias de valor na Ásia associadas a Japão, Coreia do Sul e Taiwan, que ainda não têm acordos de livre comércio entre si e outros membros.

Sob a liderança do Japão, oficiais dos governos envolvidos no acordo original, à exceção dos americanos, negociaram um texto-base. O texto, ainda não divulgado para o público, não está fechado, mas os “core elements” já teriam sido definidos, quais sejam, remover apenas temporariamente pontos polêmicos com o compromisso de seu eventual restabelecimento mais para frente e manter quase intacto o acordo original.

Ainda que haja reservas a muitos pontos que teriam sido duramente defendidos pelos Estados Unidos na TPP, notadamente nas áreas de propriedade intelectual, serviços e economia digital, a principal razão das alterações minimalistas seria a de criar as condições para atrair aquele país de volta para o acordo.

Em razão da ampla e inconteste competitividade das empresas americanas nas áreas de serviços e economia digital, há consenso entre analistas e diplomatas de que o retorno dos Estados Unidos ao acordo seja apenas questão de tempo.

Do texto original de 622 páginas (fora anexos), o atual teria 584 páginas. Dos 29 capítulos, 17 tiveram nenhuma ou quase nenhuma mudança. Os demais tiveram apenas alterações pequenas, à exceção do capítulo de propriedade intelectual. Os compromissos originais de desgravação e acesso a mercados de bens e serviços, listas negativas, investimentos, movimento temporário de pessoas de negócios, compras públicas e empresas públicas, por exemplo, foram todos mantidos. Capítulos cruciais como os de comércio eletrônico, economia digital, serviços em geral, serviços financeiros, coerência regulatória, regras de origem, barreiras técnicas ao comércio, competição e temas sanitários e fitossanitários foram mantidos praticamente na sua totalidade.  Em serviços, manteve-se até mesmo o controverso requerimento de limitação de presença local; em economia digital, manteve-se até o não requerimento de se sediar dados do país no próprio país, a despeito das já reconhecidas potenciais consequências para segurança e privacidade.

Ainda que minimalistas, houve mudanças que merecem destaque, incluindo as que seguem.

  • Encomendas expressas – preservou-se espaço de competição para empresas públicas de serviços postais.
  • Mecanismo de disputa Estado-investidor – aumentaram-se os espaços para governos promoverem alterações legais e regulatórias de interesse público.
  • Investimentos – removeram-se da cobertura do acordo os chamados acordos de investimentos e autorização de investimentos, modalidades tipicamente associadas a investimentos nos setores de óleo, mineração e outras commodities.
  • Propriedade intelectual – este foi o capítulo que passou por maiores alterações. Foram removidas ou alteradas provisões de proteção a patentes biológicas (o lobby farmacêutico americano teria sido o principal responsável pela rejeição do TPP pelo Presidente Trump), testes de dados de patentes, novos meios de proteção a tecnologias da informação, incluindo medidas de proteção tecnológica (TPMs), direitos de informação, sinais criptografados de TV a cabo e satélite e portos seguros para provedores de serviços de internet, e reduziu-se o período de copyrights de 70 para 50 anos.

Ao promover a convergência regulatória em serviços e em economia digital e remover barreiras para o comércio de serviços e de dados, o CPTPP será o primeiro acordo de comércio a favorecer o livre trânsito de dados entre fronteiras.

Embora possa haver benefícios imediatos com a ampla liberalização daqueles setores, é preciso levar em conta que serviços e economia digital se tornarão  a mais importante fronteira de crescimento econômico e de geração de empregos e a face mais fundamental das relações econômicas entre países no século XXI. É a globalização 2.0, com amplas repercussões para o crescimento de países emergentes e para as perspectivas deles superarem a armadilha da renda média.

É preciso também levar em conta as assimetrias e as muitas repercussões dos efeito-rede e plataforma e as consequências da crescente consolidação de mercados em torno de algumas poucas grandes e poderosas empresas dos setores de serviços e economia digital, as superestrelas. A questão, portanto, é menos a de se e mais a de como se engajar nessas liberalizações.

Dada a abrangência de escopo das disciplinas envolvidas, a CPTPP deverá inspirar outros acordos. Na verdade, o acordo já é visto como um benchmark para futuras negociações comerciais e elementos do acordo Mercosul-EU, por exemplo, já se inspiram no TPP.

Novas rodadas de negociações acontecerão nas próximas semanas para remover obstáculos ainda remanescentes e detalhar procedimentos associados aos próximos passos. Há um acordo de assinatura do documento já no primeiro trimestre de 2018. O CPTPP entrará em funcionamento após a ratificação por pelo menos seis países. Espera-se que até o final de 2018 o acordo já esteja operacional.

O Fim do TPP?

O Presidente Trump cumpriu promessa de campanha e uma das suas primeiras medidas foi a retirada dos Estados Unidos daquele que é amplamente visto como o mais ambicioso e abrangente acordo comercial jamais desenhado, o Trans-Pacific Partnership (TPP). O principal argumento utilizado pela nova administração é o de que o TPP seria prejudicial para os trabalhadores americanos, notadamente os da manufatura.

Figura – Mapa de países que estariam no TPP

Mapa retirado de China-US Trade Law

A decisão é surpreendente porque as mudanças propostas pelo TPP, sob liderança americana, nos parâmetros que governam o comércio e o investimento seriam imensas, uma espécie de “game-changer“, o que levou muitos analistas a concluírem que o acordo inauguraria uma nova geração nas relações econômicas entre os países. De fato, o impacto potencial do acordo seria de tal monta que levou o Presidente Obama a dizer que “the TPP means America will write the rules of the road in the twenty-first century”.

A surpresa é ainda maior em razão de que os temas que mais profundamente seriam afetados pelo TPP são serviços, propriedade intelectual e economia digital, áreas que os Estados Unidos são supercompetitivos e, portanto, as que mais proporcionariam ganhos para o país, inclusive na forma de criação de muitos empregos.

Os principais exercícios econométricos sugerem que os ganhos comerciais do TPP para os Estados Unidos seriam modestos, o que pode ter contribuído para reduzir apoio ao acordo. No entanto, essas estimações não levam em conta benefícios diretos e indiretos de mais difícil mensuração, como aqueles proporcionados pela convergência regulatória e de padrões, novos mecanismos de soluções de controvérsias e economia digital, nem tampouco consideram os serviços “embarcados” nos bens. Por isto, parece bastante razoável considerar que os cálculos dos benefícios do TPP para os Estados Unidos estariam largamente subestimados.

O argumento de que o fim do TPP poderá redirecionar investimentos e criar empregos na manufatura americana é questionável. Há crescente consenso de que a expansão significativa de empregos na manufatura é objetivo pouco plausível nos dias de hoje, sobretudo para países em estágios avançados de desenvolvimento econômico e tecnológico. Isto se deve às novas tecnologias de produção e de organização da produção que são, por natureza, cada vez mais poupadoras de mão de obra. A popularização dos robôs e a internet das coisas são somente a ponta deste iceberg.

A crescente importância dos serviços como insumos de produção, a relação cada vez mais sinergética e simbiótica entre bens e serviços para criar valor, as mudanças demográficas e as mudanças nas preferências dos consumidores em favor de serviços fortalecem a ideia de que a relevância desse setor para a geração de riquezas e empregos deverá aumentar ainda mais ao longo das próximas décadas.

A decisão de retirada do acordo também surpreende em razão do hercúleo esforço negociador feito pela administração anterior para concluir e ratificar o TPP, naquela que seria uma das maiores realizações do Presidente Obama na área econômica e, certamente, a sua maior realização na área do comércio e dos investimentos.

Por fim, a mudança de planos também surpreende em razão de seus potenciais efeitos associados à China.  Países do TPP já estão até considerando outros arranjos de acordos regionais em detrimento dos interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos no Pacífico.

Se o acordo seria tão potencialmente benéfico para os Estados Unidos, como, então, explicar a sua retirada do TPP? O principal suspeito são insatisfações setoriais a itens específicos do TPP. Dentre os mais conhecidos estão a indústria farmacêutica, que se revoltou contra o período negociado de proteção intelectual para drogas biológicas, e a indústria do tabaco, que se revoltou contra a não inclusão do setor no mecanismo de solução de controvérsias em eventuais disputas entre a indústria e Estados soberanos. O significativo poder de lobby daqueles setores teria levado congressistas a reduzirem apoio ao acordo.

Será o fim do TPP? É muito improvável. O mais provável é que a arquitetura básica do acordo seja preservada e, eventualmente, ajustada para refletir as demandas setoriais americanas, servindo então como ponto de partida para novas negociações comerciais bilaterais e até regionais.

É difícil imaginar que um acordo que praticamente sedimentaria a liderança americana em nível global nas áreas que mais crescem e que mais influências terão no século XXI seja abandonado. O que provavelmente veremos é um TPP “repaginado” e, talvez, ainda mais alinhado com os interesses americanos.

Nota: as opiniões aqui expostas não necessariamente representam as visões das instituições às quais o autor está ligado.

Os Serviços são o Âmago da TPP

map of the world

A Parceria Transpacífico (TPP) é o mais amplo e ambicioso acordo de comércio e investimentos jamais feito. A gama de temas cobertos é tão ampla que o acordo mais parece um menu de políticas – trata desde questões fitossanitárias e regras de origem, passando por empresas estatais, uso de tecnologias digitais, investimentos, trabalho, meio ambiente, agricultura, propriedade intelectual, movimento de pessoas, dentre outros.

Uma análise mais cuidadosa tendo como pano de fundo acordos já em vigor, incluindo os que estão por debaixo do guarda-chuva da OMC, e acordos bilaterais, mostra que os passos mais largos e que mais diferenciam a TPP estão na integração e coordenação de capítulos em torno de um núcleo comum, que é o da harmonização e convergência regulatória, remoção de barreiras não tarifárias, acesso a mercados e competição.

Seja em razão de compromissos já firmados na área de bens em acordos já vigentes, seja em razão da crescente relevância dos serviços na economia mundial, pode-se afirmar que o setor de serviços será a atividade mais afetada pela TPP.

O acordo tem capítulos e disposições específicas em áreas de grande potencial de crescimento econômico, como serviços financeiros, telecomunicações, comércio eletrônico, logística, licenciamento, softwares e propriedade intelectual, tudo isto permeado por um capítulo crítico na área de comércio de serviços e outro na área de barreiras técnicas.

Provisões como vedação da discriminação contra empresas estrangeiras, praticamente livre acesso a mercados, extensão dos benefícios da nação mais favorecida às empresas dos países da TPP, não obrigatoriedade de presença comercial como condição para se operar num determinado mercado, lista negativa para proteção de mercado, liberdade de transferências de pagamentos entre fronteiras, reconhecimento da autenticação e da assinatura eletrônicas para e-commerce e liberdade de acesso à internet formam um arcabouço sobre o qual empresas de serviços de um país-membro poderão acessar quase que sem restrições os mercados dos demais países-membros.

Considerando-se que os serviços já são a atividade predominante da economia global, mas que cuja participação seguirá crescendo ao longo dos próximos anos, não nos parece exagero dizer que a TPP, se ratificada, terá impactos substanciais na criação de empregos e na geração de valor para os países que mais e melhor conseguirem se beneficiar das oportunidades do mercado de serviços.

Por isto, também não nos parece exagero dizer que a TPP deverá inaugurar uma nova etapa da globalização.

TPP, Serviços e Desenvolvimento Econômico

O colapso da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o ritmo lento das discussões em torno de disciplinas como serviços e propriedade intelectual contribuíram para estimular uma profusão de acordos plurilaterais. O principal acordo ora em discussão é o Trans-Pacific Partnership (TPP), que merece atenção especial em razão do porte das economias envolvidas e da sua declarada pretensão de ocupar espaço não preenchido pela OMC de estabelecer bases e padrões conceituais de governança e de abrangência da agenda do comércio. O TPP envolve Estados Unidos, Japão e mais outros tantos países do Pacífico. O acordo deverá ser finalizado em breve e submetido para ratificação dos respectivos parlamentos provavelmente em 2016.

O grande diferencial desse acordo não está na remoção de barreiras tarifárias entre os países envolvidos, que já são bastante baixas, mas em temas como compras governamentais, investimentos, mercado de trabalho, meio ambiente, competição e, sobretudo, em serviços e propriedade intelectual.

Para os Estados Unidos, país com ampla vantagem comparativa em serviços, o acordo tem caráter estratégico não apenas pelos seus impactos nas exportações de serviços e na consolidação do comando de cadeias globais de valor, mas, sobretudo, porque garantirá a geração de empregos em larga escala. De fato, como os serviços estão se tornando “tradable” e cada vez mais são providos a partir de um terceiro país, então a liberalização terá profundas repercussões na forma como entendemos comércio internacional, investimentos, fluxos de mão de obra qualificada e de capitais e, sobretudo, crescimento econômico.

Quando calculado em valor adicionado, os serviços já representam 54% do comércio global, mas estima-se que serão 75% até 2025. O mercado mundial do segmento de serviços comerciais, por exemplo, é de US$ 4 trilhões, mas estima-se que chegará US$ 9 trilhões nos próximos 10 anos.

Economistas como Dani Rodrik, Joseph Stiglitz e Andrés Velasco argumentam que, por serem excessivamente restritivas para atender aos interesses de grandes corporações, as cláusulas de propriedade intelectual propostas no TPP reduzirão, ao invés de aumentar a eficiência e a competição em vários mercados, com impactos negativos no acesso ao conhecimento, tecnologias e inovações por parte dos países em desenvolvimento.

Embora haja apelo na abertura ampla dos mercados de serviços devido aos seus efeitos mais imediatos no bem-estar das pessoas e no acesso a serviços comerciais mais competitivos, há, também, outros aspectos que devem ser considerados. Países que buscam escapar da armadilha do crescimento não deveriam abrir mão de encorajar e estimular atividades econômicas em que ainda seja possível aliar crescimento do emprego com aumento da produtividade. Este é precisamente o caso dos serviços, notadamente por seus efeitos potenciais no desenvolvimento de inovações tecnológicas e de novos modelos de negócios, bem como no aumento da densidade industrial e da diversificação da produção e das exportações.

Proteger a propriedade intelectual e promover a eficiência dos mercados são postulados. Mas também é preciso reconhecer a necessidade de se acelerar a disseminação e a absorção do conhecimento e a crucial relevância dos serviços para o desenvolvimento econômico.

Determinantes do engajamento nas negociações internacionais em comércio eletrônico

Como já apontado por este blog, no âmbito multilateral e plurilateral existem diversos acordos comerciais que já contemplam o tema do comércio eletrônico. Diferentemente do que ocorria há cerca de cinco anos, esse tema deixou de ser uma novidade nos acordos regionais, sendo proposto não apenas por países de renda mais elevada, mas, também, por países em desenvolvimento. O que se observa, todavia, é que o nível de engajamento em acordos de comércio eletrônico tem relação bastante próxima com a estratégia traçada por esses países para conquistar espaço na arena digital, que é o que se explora neste post.

A ideia geral do post é apresentada na tabela em anexo.

Há clara divisão de interesses nas negociações internacionais em e-commerce. Esses interesses estão relacionados à posição dos países no mapa econômico digital. Notoriamente, países que possuem empresas líderes no desenvolvimento, gerenciamento e distribuição de tecnologias digitais, os quais chamaremos de Developers of Digital Technologies – DDTs, destacam-se pelo seu engajamento e incentivo a  acordos que contemplem cláusulas fortes em comércio eletrônico. São países que têm incumbentes em diversos setores e nichos de atuação e cadeias de valor no setor digital já estabelecidas e com interesses já mapeados sobre os benefícios potenciais de acordos em e-commerce.

Em geral, os DDTs têm marcos regulatórios consolidados sobre questões fundamentais para o desenvolvimento digital e buscam ser referência regulatória e de padrões técnicos para os demais países. Suas empresas buscam maximizar os benefícios da gestão de plataformas e de tecnologias digitais pela disseminação do acesso e uso de seus serviços e têm retornos crescentes de escala advindos do uso de suas tecnologias e do efeito-rede e efeito-plataforma. Não por outro motivo, esses países  têm interesses fortemente ofensivos em comércio digital.

Já os países que chamamos de Users of Digital Technologies Countries – UDTs têm empresas que são, com exceções pontuais, se muito, majoritariamente usuárias e não desenvolvedoras, gerenciadoras e distribuidoras de commodities digitais. A consequência disto é um engajamento mais modesto em acordos internacionais e posições essencialmente reativas.

Os UDTs têm oportunidades de ganhos potenciais com acordos, pois maior acesso à tecnologias digitais, tais como computação em nuvem, inteligência artificial, big data, data analytics, sensores, robôs, impressoras 3D, entre outras, pode possibilitar melhorias de eficiência, desempenho, produtividade e competitividade de curto prazo. Essas tecnologias podem também beneficiar consumidores, que usufruirão de maior gama de serviços.

Todavia, há que se qualificar os benefícios que os UDTs podem usufruir em razão da adoção massificada de tecnologias digitais associados à “commoditização digital” (Arbache, 2018). Esse processo significa que ainda que as empresas tenham ganhos de eficiência e competitividade com a adoção de novas tecnologias digitais — os denominados benefícios de primeira ordem — esses ganhos tendem a diminuir e, eventualmente, a convergir para zero à medida que mais empresas adotam aquelas mesmas tecnologias. Já os benefícios associados ao desenvolvimento, gestão e distribuição de tecnologias — os denominados benefícios de segunda ordem —  são usufruídos apenas por poucas empresas e suas cadeias de produção. Em razão dos efeito-rede e efeito-plataforma, acordos internacionais liberalizantes de e-commerce criam enormes oportunidades de crescimento e lucros para as empresas dos DDTs.  

O confronto entre os benefícios de primeira e segunda ordem está no cerne do debate sobre a associação entre economia digital e desenvolvimento sustentável.  

Comparemos três casos de alto engajamento em acordos e portanto, de países que são ou buscam ser DDTs: Estados Unidos, países desenvolvidos do Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP, na sigla em inglês) e países da União Europeia. Apesar de diversas diferenças entre eles, os três grupos de países têm interesses ofensivos em comércio eletrônico. Buscam se posicionar como protagonistas da era digital, dentre outros, por meio de regras que limitem o espaço para desenvolvimento de regulamentações domésticas discriminatórias e protecionistas e até mesmo que gerem segurança ao ambiente de negócios online.

Considere o caso dos Estados Unidos. Não há dúvidas que o país exerce, hoje, liderança digital, sendo detentor das principais empresas de tecnologia e  sede das principais plataformas B2B, B2C e C2C. Suas big techs e respectivas plataformas capturam cada vez mais valor a partir da imensa capacidade de acesso a dados que as colocam em posição ímpar de desenvolver e fornecer soluções às demandas por novos serviços e novas aplicações. O país busca conter o que o próprio governo americano classifica como protecionismo digital, que é o levantamento de barreiras ao livre fluxo de dados entre fronteiras, vital para o modelo de negócios das big techs. Para além de acordos plurilaterais, a arena escolhida para isso é a OMC que, apesar de todos os impasses e críticas colocados pelos próprios Estados Unidos em relação ao multilateralismo, recebe forte pressão do país para iniciar discussões em formato de texto negociador e busca mandato negociador na Conferência Ministerial do órgão em 2019.

Japão, Austrália, Canadá, Cingapura, entre outros, seguem diretriz parecida: são países que têm o que oferecer em termos de plataformas e soluções digitais e que tomaram a frente do CPTPP. Buscam garantir a formação de regras para o comércio eletrônico que correspondam aos seus interesses de exercer influência e contrabalancear o avanço das titãs digitais americanas e chinesas.

A União Europeia tem um grupo de países com razoável grau de desenvolvimento em economia digital e em e-commerce, mas com poucas big techs e plataformas em nível global. Apesar disso, a UE tem avançado de forma consistente na promoção da economia digital no bloco, com o “mercado digital comum”, e na regulação sobre questões cruciais, como proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais. Com regulação forte e “in place”, o bloco garante um ambiente de negócios digital próspero que repercute em sua posição também avançada nas negociações bilaterais de e-commerce.

Já a China tem estratégia e objetivos claros quanto ao e-commerce e à economia digital e já são desenvolvedores, distribuidores e gestores de grandes plataformas globais de e-commerce. Ao mesmo tempo, a “Great Firewall of China” mantém o mercado doméstico praticamente fechado, o que restringe o fluxo de dados e os investimentos em serviços de nuvem cross border, dentre outros.

Os UDTs posicionam-se no outro lado do espectro e têm engajamento basicamente reativo em acordos que contemplam comércio eletrônico. Aqui temos os países africanos, a Índia (que está na “ponta final” desse espectro, já que não tem frentes negociadoras abertas em e-commerce) e países como Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Malásia, Vietnã e Indonésia.

É claro que há diferenças significativas entre esses países. No caso de Chile, Colômbia e Costa Rica, por exemplo, observa-se uma abordagem mais arrojada dentre os UDTs. No caso do Vietnã, Malásia e México, o que se vê é que esses países endossam a posição já aceita em acordos como o CPTPP, que é replicada nos seus acordos seguintes.  Buscam ganhos como hubs regionais de comércio e investimentos advindos de economias avançadas. É possível que esses países se beneficiem de ganhos de produtividade e de bem estar para o consumidor. Mas os ganhos estruturais são incertos, posto que não há razões para esperarmos que passarão da condição de UDTs para a de DDTs.

E o Brasil? O país parece se encaixar bem no perfil dos “strategy seekers”, que são países com grande mercado (classe média com relativo poder de compra e avidez por compras online) e infraestrutura de TIC suficiente para sustentar a expansão do e-commerce, com plataformas locais ou domésticas de e-commerce que se beneficiam da limitada penetração de plataformas globais em razão do ambiente problemático de negócios. Assim como a Argentina, o país busca ser usuário qualificado de e-commerce e ampliar o acesso à novas tecnologias. Todavia, não possui empresas e plataformas de peso que, de fato, façam comércio eletrônico em bens em nível internacional. Em serviços em geral, a atuação se limita a alguns nichos, como engenharia e TI.

As provisões em e-commerce devem ser vistas não como provisões regulatórias e adicionais aos demais capítulos já negociados mas, sim, como formadoras de um capítulo transversal capaz de alavancar o potencial de ganhos advindos de capítulos mais tradicionais, como bens, serviços e propriedade intelectual. A adoção cada vez mais generalizada de um capítulo que tem profunda relação com a estratégia que os países tem desenhado para avançar na era digital mostra o interesse de economias como os Estados Unidos, Japão, Canadá,  países da União Europeia e China em garantir que o comércio se manterá como peça-chave para esse avanço — não o comércio tradicional, mas o comércio de bens e serviços digitais, que hoje já explica grande parcela  dos fluxos de comércio global.

O que querem os países nas negociações de e-commerce?

O comércio digital tem crescido rapidamente no mundo todo. De acordo com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as vendas globais de bens e serviços pela internet alcançaram US$ 25,7 trilhões em 2016. Desse valor, 90% foram transações entre empresas (B2B). Como consequência, provisões sobre comércio digital cresceram substancialmente nos âmbitos dos acordos regionais de comércio com o objetivo de remover e evitar barreiras ao livre fluxo de dados e conter o surgimento do chamado “protecionismo digital” ou proteger e resguardar interesses nacionais associados à esta agenda.

Dado mais recente da Organização Mundial do Comércio mostra que 80 dos 305 acordos notificados à instituição têm provisões ou capítulos sobre o tema. Quando se olha apenas os acordos recentemente notificados, o que se vê é que a vasta maioria dos acordos já abarcam temas de e-commerce. Com os vários acordos ora em negociação bilateral e regionalmente, tudo indica que esse número ainda crescerá bastante nos próximos anos.

Em análise feita pela OMC focada em 63 acordos regionais com capítulos específicos sobre comércio eletrônico, entre eles o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CTPP), seriam os países desenvolvidos que estariam a “puxar” aquelas negociações. Estados Unidos, Cingapura, Austrália, Canadá e Coreia do Sul são os países que mais alavancaram o tema de e-commerce em ARCs. Muitos países em desenvolvimento hoje têm acordos com essas provisões à reboque da demanda de países desenvolvidos para fechar negociações.

Os temas que compõem os acordos variam bastante, não apenas em conteúdo, como, também, em profundidade dos compromissos. A maior parte inclui cláusulas de não-tributação de transmissão eletrônica, cooperação, proteção de dados pessoais e do consumidor. Em menor escala, mas também frequente, estão temas de aplicabilidade das regras da OMC ao comércio eletrônico, comércio sem papel, tratamento não-discriminatório de produtos digitais e autenticação eletrônica. Questões mais controversas, como localização de servidores e código-fonte, estão presentes apenas em acordos mais recentes. O formato desses acordos também varia — muitos têm capítulos separados para comércio digital, enquanto outros preferiram deixar o tema no capítulo de serviços.

Acordos ainda em negociação ilustram bem as posições dos países em relação ao tema de comércio digital. Na proposta apresentada na OMC ou nos textos em negociação com México e Chile, já é possível ver com clareza os pontos importantes na negociação para os europeus: a proibição da imposição de impostos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e o banimento de procedimentos de autorização focada apenas em serviços online “por motivos protecionistas” (colocado como princípio de não-autorização prévia), e o aceite de contratos e assinaturas eletrônicas.  O bloco ainda negocia o tema com o Mercosul, e o capítulo de comercio eletrônico ainda requer alguma convergência e a definição de exceções à aplicação das provisões.

O que se vê nesse e em outros acordos recentes é reflexo do avanço da União Europeia na promoção da economia digital no bloco, como o “mercado digital comum”, e na regulação sobre várias questões cruciais para a economia digital, como a proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais (autenticação eletrônica, por exemplo).

Ao colocar a proteção de dados pessoais como “não negociável” em acordos de comércio, por se considerar um direito fundamental, a Comissão Europeia retira o tema de pauta das negociações bilaterais. A regulação sobre proteção de dados europeia (GDPR, na sigla em inglês), que entra em vigor dia 25 de maio, responde à demanda dos cidadãos europeus por mais transparência sobre quem tem seus dados, de onde eles vieram e com quem eles são compartilhados. Ao mesmo tempo, o bloco tem trabalhado em provisões para evitar medidas protecionistas sobre o fluxo de dados entre fronteiras, ao tempo que garantam a proteção e a privacidade dos dados no patamar colocado pelas novas regras no bloco.

Apesar de terem se retirado das negociações do Acordo Transpacífico (originalmente TPP e agora CTPP) como um dos primeiros atos oficiais da administração Donald Trump e de terem apresentado diversas críticas à OMC em relação a comércio eletrônico, os Estados Unidos vêm firmando posição naquela Organização e destacando que o comércio digital segue como essencial para a economia do país, o que está em linha com a condição de sediar muitas das maiores e mais influentes empresas de economia digital, incluindo plataformas de e-commerce.

A posição dos americanos na OMC seguiu em defesa do livre fluxo de informações e de transferência de dados entre fronteiras, não exigência de localização de servidores e proibição do bloqueio de conteúdo online. Advoga-se pela não tributação sobre transmissões eletrônicas, não-discriminação no tratamento de produtos digitais, proteção a código-fonte e não restrição à encriptação. Trata-se de um claro esforço para avançar as discussões sobre comércio eletrônico na Organização e reduzir as possibilidades de barreiras digitais aos fluxos de dados, algo vital para o atual modelo de negócios das empresas super-hegemônicas americanas de tecnologia digital.

Já no continente africano, o tema do comércio eletrônico é dominado por um pequeno grupo de países, entre eles Egito, África do Sul, Gana e Etiópia. A região tem baixíssima participação no comercio digital global (inferior a 1%) muito em virtude dos grandes desafios que a região enfrenta, como acesso à eletricidade, tecnologia da informação e comunicação (TIC), logística, baixo uso de métodos de pagamentos eletrônicos, pouco acesso a cartão de crédito, fraca penetração bancária e falta de conhecimento sobre TI e habilidades ligadas a e-commerce, tanto de empresas como de consumidores.

O tema de comércio eletrônico não está na mesa nos acordos que a região da África está negociando, como é o caso da Zona de Livre Comércio Continental (CFTA, na sigla em inglês). No âmbito multilateral, o Grupo Africano, que não é composto por todos os países do continente, durante as reuniões pré-Ministeriais de Buenos Aires, mostrou grande preocupação com as implicações de novas regras em e-commerce e com a potencial restrição que tais regras colocariam sobre o espaço para políticas industriais digitais voltadas ao desenvolvimento da região. Uma adoção de regras “prematuras” poderiam reduzir ainda mais, na visão do bloco, as possibilidades futuras de catching up de crescimento econômico e tecnológico.

A Índia também está entre os países com ressalvas quanto ao avanço nas negociações em e-commerce na OMC. O país tem tido forte expansão do mercado de comércio eletrônico e da penetração da internet e de smartphones e tem receio de que as novas regras multilaterais prejudiquem o crescimento das plataformas de e-commerce nacionais. No último documento circulado pelo país na OMC, posicionaram-se contra o avanço nas negociações de regras em comércio eletrônico, tal como o Grupo Africano. O país assinou apenas um acordo que cobre o tema de comércio eletrônico, provavelmente por demanda da contraparte cingapuriana.

Em lado oposto, não há região mais promissora no comércio eletrônico que o leste da Ásia. A região já tem alguns dos gigantes globais da internet e do e-commerce e ao menos 1 de cada 3 novos unicórnios são daquela região. A região tem um mercado digital pujante, com forte aumento anual no número de consumidores. A China, sozinha, é, hoje, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo, respondendo por 40% das transações globais. Nessa condição, a região tem uma postura diferente da de outros países em desenvolvimento. Afinal, a região se posiciona para ser parte do mainstream da indústria global do e-commerce e da economia digital. Ainda que o tema não se reflita em números de acordos assinados, já é possível ver apontando no horizonte as demandas que o país tem para seguir avançando na provisão de bens e serviços digitais para os mais diversos mercados.

Já o Brasil segue negociando acordos com União Europeia, Chile, México, Índia, Canadá e Associação Europeia de Livre Comércio (EEFTA) e tem mandato negociador já aprovado para negociações com a Coreia do Sul e conversas ainda preliminares com Cingapura. O país segue com participação ativa nas negociações na OMC, seguindo o indicado na Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico. Com o crescimento do interesse de países desenvolvidos por provisões em comércio eletrônico, alguns desses acordos passam a repercutir aqueles anseios. Na condição de país essencialmente “usuário” das tecnologias digitais, o Brasil tem sido cauteloso nas negociações de forma a resguardar espaço de política. O país tem colocado na mesa a necessidade de associar o e-commerce a preocupações de desenvolvimento econômico. Afinal, tem ficado cada vez mais evidente a tendência de concentração do mercado de e-commerce em nível global em torno de um pequeno punhado de grandes plataformas, bem como a distinção entre os benefícios de se “usar” e-commerce e os benefícios de se “desenvolver, distribuir e gerenciar” plataformas de e-commerce, o que é prevalecente para alguns poucos países. De fato, já se identificam evidências de que o hiato entre esses dois grupos de benefícios poderá ser a fonte fundamental de aumento da desigualdade de renda entre países.

Pela análise dos acordos em andamento, já é possível ver convergência para alguns temas centrais, que devem acabar sendo os principais assuntos a terem resultados em um eventual acordo multilateral sobre o tema. A grande presença do comércio digital em acordos regionais e bilaterais é uma clara resposta à ânsia dos países em avançar na agenda antes que mais barreiras ao comércio digital e ao fluxo de dados sejam aprovadas em nível doméstico.

Os países que têm maior receio quanto ao avanço da economia digital e do poder das mega-empresas digitais sobre as suas economias muitas vezes têm dificuldades em colocar a sua posição sobre um tema cujo alcance ainda não está claro. Acordos de comércio apresentam inúmeras frentes de negociação, sendo difícil consolidar posição em economia digital frente às demandas prementes e bem mapeadas em bens,  investimentos, regras de origem e compras públicas, por exemplo.

Orquestrar todos os interesses é matéria difícil quando se tem maior conhecimento e tactibilidade nos efeitos das provisões para o comércio entre os potenciais parceiros em temas tradicionais. Todavia, cada vez mais, os países atentam-se para a importância de se olhar com cautela para o que os capítulos de comércio eletrônico contemplam, o que torna ainda mais importante o engajamento em fóruns multilaterais de forma a manter espaço suficiente para políticas públicas digitais que permitam aos países, em especial os em desenvolvimento, otimizar os benefícios da revolução digital.

Um acordo de e-commerce no Sistema Multilateral de Comércio é possível?

A economia digital tem transformado rápida e radicalmente as formas que as pessoas se relacionam, a maneira como os países comercializam e até mesmo os meios de produção das empresas. A 4ª Revolução Industrial tem como base a economia digital e já está em curso.

Apesar de constantes referências ao tema “Comércio Eletrônico” na Organização Mundial do Comércio (OMC), o tema está longe de ser novo na Organização. Diante das evidências de que o comércio eletrônico se expandia rapidamente e criava novas oportunidades para o comércio internacional, os ministros presentes à 2ª Conferência Ministerial, realizada em Genebra em 1998, adotaram a Declaração sobre o Comércio Eletrônico Global.

Tendo em vista que o assunto, à época, ainda se encontrava em estágio incipiente, foi estabelecido um programa de trabalho (WTO Work Programme on Electronic Commerce), com o objetivo de examinar os aspectos comerciais do tema. As discussões do programa de trabalho levaram a uma definição ampla de comércio eletrônico. A definição, adotada há 20 anos, se aproxima do que hoje se conhece como economia digital: produção, distribuição, marketing, venda ou entrega de bens ou serviços por meio eletrônico.

Ao longo dos 20 anos de discussão, o Grupo de Trabalho gerou poucos resultados significativos, sendo o mais relevante deles a moratória de não imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.

Desde meados de 2015, de certa forma impulsionados pela Declaração Ministerial de Nairóbi, os Membros se engajaram mais ativamente em discussões sobre o tema. A participação ativa das delegações gerou a Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico, em Buenos Aires, em que 70 Membros concordaram em iniciar trabalhos com vistas a alcançar possíveis futuras negociações em aspectos comerciais do comércio eletrônico.

Panorama do tema e principais players

A falta de avanços na formulação de regras para o tema na OMC, claro sintoma do impasse enfrentado na frente negociadora da Organização, abriu espaço para avanço do rule making na área por parte de Acordos Regionais de Comércio. De acordo com dados do RTA Database da OMC, pelo menos 79 acordos regionais contam com um capítulo dedicado a comércio eletrônico ou artigos dedicados ao tema.

Uma interessante característica dessa proliferação de provisões de comércio eletrônico em acordos regionais é a diferença de profundidade e abordagem do tema. Uma análise didática dessa “e-spaghetti bowl” de acordos regionais e dos interesses por parte dos dispositivos neles incluídos leva a uma separação em três modelos/players principais: Estados Unidos, União Europeia e China.

Os Estados Unidos, país pioneiro no mercado e detentor das principais gigantes da tecnologia (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Netflix, entre outras) têm o claro interesse de manter o mercado digital aberto, de maneira que suas empresas possam continuar usufruindo cada vez mais dos ganhos de escala característicos desse mercado, já que os custos marginais de clientes adicionais são praticamente zero. Esse interesse se reflete nos acordos regionais firmados pelo país (ou fortemente influenciados, no caso do CPTPP). Dessa maneira, o template de acordos regionais dos EUA conta com profundas regras de comércio digital, como livre fluxo de dados, proibição de exigências de localização de servidores, tratamento de código-fonte e não imposição de direitos aduaneiros em transmissões eletrônicas.

A União Europeia (UE), apesar de partilhar da posição dos EUA com relação ao princípio do livre mercado, tem se destacado na preocupação com a sua regulação doméstica. O bloco tem se dedicado à estratégia do Mercado Único Digital, que busca garantir acesso a atividades online para indivíduos e empresas sob condições de competição justa, ao mesmo tempo em que aborda questões como privacidade de dados, direitos de copyright, tributação de operações realizadas no ambiente digital, etc. Em 2018, uma série de medidas regulatórias no mercado digital europeu entrarão em vigor, entre elas a General Data Protection Regulation, que aborda questões como ampliação do escopo de jurisdição na esfera online, penalidades para plataformas online que não cumpram as regras, disciplinas para portabilidade de dados visando questões concorrenciais, etc. Essa posição é refletida nos acordos firmados pelo bloco que, comparados ao template americano, são muito mais leves com relação a regras ao mercado digital. De uma maneira resumida, os acordos firmados pela UE basicamente consagram a não imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e, no restante do capítulo, colocam mais ênfase no diálogo regulatório entre as partes (como o CETA, por exemplo).

A China, por sua vez, tem defendido soberania sobre o seu cyber espaço e se protegido da abertura do mercado digital por trás da Grande Muralha Digital (The Great Firewall of China). Dessa maneira, e aproveitando-se do enorme mercado doméstico à sua disposição, a China consagrou criar um universo digital paralelo, com empresas chinesas operando no mesmo espaço das conhecidas empresas ocidentais, como AliBaba, Baidu e Tencent (WeChat). A Lei de Segurança Cibernética chinesa, em vigor desde junho de 2017, contém 79 artigos que contêm três posições centrais[1]: (i) dados físicos obrigatoriamente armazenados na China continental; (ii) inspeções obrigatórias de segurança em equipamentos antes de sua instalação; e (iii) regulações de retenção de dados e assistência de law enforcement obrigatória. Apesar de o país ter firmado alguns acordos regionais com disciplinas de comércio eletrônico, tome-se o Acordo entre China e Austrália como exemplo, as obrigações neles contidas não vão muito além das já previstas no âmbito da OMC, o que reflete a estratégia do país.

Desdobramentos recentes na OMC

Após a assinatura da Declaração Ministerial conjunta, as discussões do tema na OMC têm prosperado. Em 2018 já foram realizadas duas reuniões específicas para o tema e já há previsão de outras três nos próximos meses (maio, junho e julho). Ademais, 9 documentos já foram circulados contendo propostas para o futuro das discussões na Organização de autoria dos seguintes países: Argentina, Colômbia, e Costa Rica; Nova Zelândia; Brasil; Japão; Estados Unidos; Singapura; Japão; Rússia; e Taipé Chinês.

As propostas têm conteúdo e mostram apetite dos países. Em especial, a proposta americana é robusta e demonstra engajamento do país para discussão do tema. Levando em consideração as recentes posições do país com demais temas no sistema multilateral, esse posicionamento sugere prestígio do tema.

Contudo, o vale existente entre as posições dos principais players da economia digital, aliado à questão do desenvolvimento e do hiato digital, sugere que não há um caminho óbvio e único a percorrer. De todo modo, é válida a premissa de que, quanto antes os países encararem a discussão, menores serão os custos econômicos envolvidos.

O fato é que a revolução digital já está em curso e não pausará à espera de consenso entre os Membros da OMC. Ademais, a negociação de um acordo ambicioso em comércio eletrônico e economia digital mostraria que a Organização é capaz de se modernizar e apresentar uma resposta aos novos desafios da economia e comércio mundial.

A proposta brasileira traz uma boa abordagem para superar o impasse que pode ser estabelecido diante de posições tão divergentes. Além de buscar organizar todos os temas que merecem ser discutidos na Organização, a proposta apresenta uma divisão do tema em blocos, facilitando a compreensão da vasta gama de assuntos e permitindo flexibilidade na adoção de regras. Dessa forma, os Membros poderiam aceitar compromissos de uma maneira taylor-made: países de menor desenvolvimento relativo, por exemplo, podem participar de todas as discussões, mas optar por adotar apenas compromissos leves de comércio eletrônico, enquanto países que assim desejem podem estabelecer e aderir compromissos profundos relacionados à economia digital.

Dificuldades existem, mas o fato é que os Membros da OMC dispõem de oportunidade, motivo e engajamento para o lançamento de negociações oficiais de comércio eletrônico. Resta saber se haverá consenso para seguir adiante. Ao que tudo indica, saberemos em breve os próximos passos dessas discussões.

[1] “Começaram as guerras no comércio digital: delineando os campos de batalha regulatória”. Dan Ciuriak, Maria Ptashkina. Pontes, volume 14, número 1 – Março 2018.

Comércio eletrônico: é preciso regulamentar?

O entendimento sobre o que é comércio eletrônico abrange mais do que a simples venda de bens pela internet. Apesar do varejo em lojas físicas ainda representar a maior parcela do comércio total, o e-commerce – tanto business-to-business (B2B) como business-to-consumer (B2C) – tem crescido muito nos últimos anos, especialmente na modalidade transfronteiriça. Relatório da empresa internacional de logística DHL aponta que, em 2020, esse mercado poderá passar de US$ 1 trilhão, representando 22% de todo o e-commerce mundial.

As implicações desse movimento para a economia são cada vez mais visíveis. Basta observar o valor de mercado e o crescimento projetado das vendas de empresas como Amazon e Alibaba, e o fortalecimento dos braços de compras de plataformas como Facebook e Google (Google Shopping) para compreender porque temas ligados ao comércio eletrônico estão ganhando cada vez mais espaço nas discussões internacionais de comércio.

A consolidação do mercado global de e-commerce está se tornando desafio crescente para empresas locais ou entrantes competirem com “superestrelas” como a Amazon. A lógica do winner-takes-all explica as aquisições e fusões defensivas de grandes varejistas. No fundo, é uma competição não mais por nichos de mercados, mas uma busca pela sobrevivência. Afinal, já há sinais de que as plataformas de fornecimento cuidarão de quase tudo que o consumidor precisa e deseja comprar. Como resultado, o único caminho para os varejistas locais, principalmente as lojas de médio e pequeno portes, é vender nessas megaplataformas ou marketplaces se subjugando às regras do jogo e imposições das plataformas (há algo ainda mais importante aqui, que é o fato de a plataforma capturar e usar todos os dados originados da relação entre o consumidor e o lojista – mas isto será objeto de outro post).

Apesar de paralisadas as negociações, o Tratado da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês) cumpriu papel importante ao revelar que o e-commerce é uma das novas arenas de “luta” no comércio mundial. Basicamente, o TPP pretendeu determinar os rumos da economia digital ao definir regras e procedimentos, incluindo o comércio eletrônico de bens e serviços, e temas como padrões, regras e tarifas sobre produtos digitais, localização de servidores, códigos fonte, etc. – todos considerados como “barreiras” aos mercados dos gigantes digitais do e-commerce. Assim, o TPP teria consequências contundentes para os seus signatários e também para os não signatários, em particular para o espaço de formulação de políticas públicas para o setor de serviços e para o e-commerce. Apesar de estar atualmente paralisado, o TPP se tornou inspiração e ponto de partida para as novas negociações comerciais.

Para economias em desenvolvimento, a atenção a essas condições deve ser redobrada, pois a participação em acordos que tratam do comércio eletrônico sem um cuidadoso debate interno sobre onde queremos chegar e o que precisa ser feito poderá dificultar o desempenho do setor e até mesmo as perspectivas do crescimento econômico de médio e longo prazos. O caso do Chile é simbólico: o comércio de varejo do país já é dominado pelos gigantes globais do e-commerce.

A corrida de ocupação dos espaços do e-commerce já tem players bem sucedidos, mas com estratégias distintas. A China praticamente fechou o mercado de e-commerce ao funcionamento de empresas americanas, como o Google e o Facebook, e limitou a ação da Amazon a vendas de bens que ela dispõe em seus próprios armazéns, impedindo-a de exercitar o seu superpoderoso braço de marketplace. Com isso, a China pavimentou o caminho para o desenvolvimento de novos gigantes como o Alibaba, JD.com e Weibo, que hoje já têm projeção global e são, juntos, substancialmente maiores que a Amazon. A China percebeu a sua condição de latecomer num setor crítico e usou ferramentas protecionistas para desenvolver a sua indústria digital nascente. Para empresas estrangeiras que podem operar na China, todos os dados devem ser depositados em servidores lá sediados.

Já os EUA estão empenhados na promoção de ampla liberalização e desregulamentação do mercado digital global, já que, à exceção das chinesas, quase todas as principais plataformas digitais globais são americanas, bem como o são as gigantes do e-commerce com maior presença no ocidente.

Os europeus, cientes dos efeito-rede e efeito-plataforma no mundo digital e no e-commerce, e temendo os efeitos de seu atraso nessas tecnologias, também estão jogando pesado em suas negociações comerciais com regiões menos desenvolvidas em prol da liberalização dos mercados de serviços, inclusive do e-commerce, em favor das suas empresas. Talvez não sejam apenas a preocupação concorrencial e com o bem estar do consumidor que expliquem as recentes multas bilionárias para a Microsoft e Google impostas pelas autoridades de competição de Bruxelas.

EUA e China são dois modelos extremos. O Brasil não é um líder digital e, por isso, agendas ultra-liberalizantes ou ultra-protecionistas devem ser vistas com cautela. Mas o Brasil não pode se enclausurar e proteger a ineficiência, sob pena de repetir os conhecidos erros do passado que ajudaram a nos trazer aqui. Talvez o mais razoável seja desenvolver uma estratégia que leve os operadores internacionais da economia digital a estabelecerem bases operacionais no Brasil (com servidores e abertura de código fonte) e formarem clusters digitais nacionais com parceiros locais.

Nessa discussão, também será preciso levar em conta que o comércio de varejo é, de longe, o setor que mais emprega no Brasil, em especial pessoas com pouca qualificação, bem como um dos setores que mais recolhem ICMS. A eventual expansão do e-commerce internacional no país não será, portanto, neutra em efeitos sociais nem fiscais, incluindo ali os impactos nos recolhimentos e nos benefícios previdenciários.

Uma estratégia nacional para inserir o Brasil na economia digital global deveria incluir ações em ao menos três direções: regulamentação interna do comércio eletrônico; construção de “capabilities”; e inserção internacional.

A regulação interna do comércio eletrônico deve partir do pressuposto de que esse não é um mero canal de vendas remoto, pois as modernas tecnologias permitem experiências de compra e venda tão ou mais completas quanto às do mundo real. Isso traz implicações para os direitos do consumidor, direito econômico (defesa da concorrência, mais especificamente), tributação, entre outros. Além disso, o Marco Civil da Internet e toda a sua regulamentação devem ser pensados numa perspectiva de desenvolvimento econômico, para além das questões sobre democracia e liberdade de expressão. Até mesmo a infraestrutura de transportes e armazenamento e suas regras precisam se adaptar para comportarem uma maior demanda por entregas rápidas, com extensa capilaridade e com projeção internacional. Também é preciso simplificar leis e normas. Porém, algumas das iniciativas recentes requerem atenção. Exemplo disso é a lei – suspensa por liminar no STF – que obriga varejistas online a recolherem ICMS em dois estados em transações interestaduais.

A construção de capabilities é uma tema especialmente importante. Apesar da tendência de consolidação do varejo eletrônico, ainda existe possibilidade de crescimento do mercado, especialmente o de nichos. Análise feita pela FedEx aponta que os segmentos de varejo eletrônico de médio porte crescem mais rapidamente que o segmento de massa. Isso ocorre pela possibilidade de prestação de vendas online e serviços com maior customização e especialização. Obviamente, isso faz parte de uma cultura empresarial na qual a possibilidade de contribuição do governo está centrada numa política de ambiente de negócios e incentivos à inovação e ao capital humano que incorporem, desde a alfabetização, o contato e a aprendizagem de linguagens de programação, machine learning e tecnologias digitais.

Finalmente, a inserção internacional deve ser o farol que orienta os dois pilares anteriores. Para isso, o país precisa amadurecer rapidamente seus planos de abertura comercial, inclusive com vistas à conquista de mercados externos. Manter a economia fechada será um equívoco; abrir o mercado digital de forma apressada sem um plano estratégico será outro equívoco.

Mas que uma coisa fique clara: o Brasil está atrasado na agenda da economia digital, que é a verdadeira guerra dos tronos do século XXI. Embora o momento atual seja de reformas estruturais que estabilizem e reorganizem a economia, é preciso ter clareza do contexto e propor políticas públicas que pensem as fronteiras econômicas do futuro. O que não podemos é esperar que o dirigismo estatal ou que o mercado por si só apareçam com soluções que parem de pé neste complexo novo mundo. Elas simplesmente não aparecerão.

O ensejo protecionista de Trump e o futuro do emprego nos EUA

Em seu governo, Trump mantém um discurso carregado de práticas protecionistas em relação ao comércio internacional, em conformidade com sua campanha presidencial. Muitas de suas ações vão no sentido de desmontar o legado de seu antecessor e, mais do que isso, desafiam fenômenos marcantes da economia global das últimas décadas, como a globalização, a interdependência e até o curso das revoluções tecnológicas e digitais. Dentre esses atos, estão a retirada dos Estados Unidos do Acordo Trans-Pacífico (TPP), as críticas direcionadas ao NAFTA e certa coerção a grandes montadoras para que mantenham as suas plantas industriais nos EUA.

A principal justificativa de Trump para tais atos e para os vários outros que poderão vir – cujas consequências para o mundo ainda são incertas – é a de aumento e/ou recuperação de empregos nos EUA, sobretudo para a classe média na produção do setor manufatureiro. Nos discursos do presidente, no entanto, há uma simplificação muito grande da complexidade da economia atual, em grande parte moldada pela globalização, tecnologia e serviços.

Em relação às tendências para o emprego, há grandes desafios críticos para a administração de Trump perante esse objetivo no médio prazo, sendo muitos deles ligados às transformações estruturais que tem ocorrido na economia norte-americana.

Apesar de não haver redução da produção manufatureira dos Estados Unidos, é mais do que evidente que nas últimas décadas houve um aumento da importância do setor de serviços em termos de agregação de valor “embarcados” no produto. Razões para isso não faltam, e destacam-se duas: primeira, o aumento de renda da população tende a aumentar a demanda por serviços de qualidade, como cuidados com a saúde; e, segundo,  a competitividade no setor manufatureiro demanda cada vez mais uma íntima relação com o setor de serviços, tornando-os, sob diversos aspectos, praticamente inseparáveis. Nesse sentido, serviços tais como pesquisa e desenvolvimento, engenharia de software, marketing e “health care”, por exemplo, tornam-se campos nos quais haveria maior perspectiva de geração de emprego, cuja oferta não supre a demanda.

A figura abaixo mostra a evolução dos principais setores em termos de emprego para cada estado americano em quatro tempos. Nota-se que pelo menos desde 1990, o setor manufatureiro foi perdendo constantemente participação relativa para o comércio de varejo. ‘Relativa’ também porque um setor não necessariamente cresce às custas de outro setor. A indústria manufatureira permaneceu como maior empregador em 2013 apenas em estados próximos da região “Rust Belt”, como Michigan, Iowa, Wisconsin, Indiana e Kentucky, e outros mais ao sul do país, como Alabama e Mississípi. Estes últimos são estados que não se destacam por dinamismo econômico e estão entre as mais baixas rendas per capita do país. Do outro lado, segundo o Bureau of Labor Statistics, em 2013, o setor de cuidados de saúde e assistência social era predominante em 34 estados, sendo que no moderno estado de Nova York é o setor predominante desde 1992.

Figura – Setores responsáveis pela maior parte do emprego por estado americano

A redução da participação relativa do setor manufatureiro é um marco da transição do sistema de riqueza industrial para a de economia do conhecimento. Em países de economia madura, dificilmente a produção manufatureira tradicional, de chão de fábrica, responderá de forma ascendente pela maior parte dos empregos. Países como a Alemanha – de alta participação do setor manufatureiro no PIB comparado a outros países desenvolvidos – têm reconhecido que, sem a incorporação de serviços de qualidade aos seus bens manufaturados (assim como sem a benesse do mercado europeu para as suas exportações), o país não conseguirá manter altos índices de competitividade na “Indústria 4.0”, ameaçando, assim, inclusive, os próprios ganhos salariais no setor de manufaturados.

De fato, o eleitor mediano de Trump não vem dos setores mais sofisticados voltados para serviços avançados e indústria de média/alta tecnologia, que são setores de alto desempenho na economia americana e mundial. Mas, com os novos modelos de negócios e revoluções tecnológicas, o hiato de salários entre os trabalhadores de alta e de baixa qualificação tende a aumentar, elevando ainda mais a preocupante desigualdade de renda. Seria mais razoável a utilização de recursos e esforços em um programa de requalificação de trabalhadores para reingressarem no mercado de trabalho com habilidades mais requeridas na economia moderna, mesmo que não seja efetivado na velocidade desejada.

O retorno aos EUA de etapas de processos produtivos que foram terceirizadas para o Leste Asiático na “fase de ouro” das cadeias globais de valor poderia ser feito pelas novas tecnologias de produção, reduzindo a fragmentação espacial da produção, e possibilitaria a produção fisicamente próxima do mercado consumidor. É incerto, no entanto, a velocidade com que esses processos se dariam, e se as normas e instituições internacionais contrarrupturas radicais poderiam adiar ou interromper tais mudanças.

Pode ser que o método da coerção realizado até aqui por Trump — discriminação contra produtos estrangeiros, privilégios tributários e investimentos em infraestrutura — traga de volta alguns empregos tradicionais para o solo americano sob o slogan “buy American, hire American”. Entretanto, é improvável que haverá geração significativa de empregos no setor manufatureiro, assim como é improvável que haverá prosperidade duradoura numa economia que se fecha.

Em algum momento, Trump terá que lidar de frente com o lado mais sofisticado e dinâmico da economia contemporânea, os serviços.

Jean Santos Lima é Doutorando em Relações Internacionais na UnB e se dedica ao estudo e pesquisa sobre Desenvolvimento Comparado, Globalização, e Política Internacional.

A contradição entre o discurso protecionista e a ascensão da economia digital

A teoria normativa da política comercial sugere que as barreiras ao comércio internacional devem ser idealmente inexistentes. Conceitos-chave, como o modelo ricardiano de vantagens comparativas e o modelo Heckscher-Ohlin da dotação relativa dos fatores de produção, defendem que a ausência dessas barreiras evita distorções e permite alocação de fatores produtivos da maneira mais eficiente possível. Em conformidade com esses preceitos, as principais economias do mundo optaram pela gradual redução de tarifas internacionais nas rodadas de negociação do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), posteriormente substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Essa redução de tarifas foi um dos fatores que contribuiu para intensificar a globalização econômica, expandir a atividade industrial para novas fronteiras geográficas e, consequentemente, fragmentar as cadeias produtivas e dinamizar a economia mundial. Durante seis décadas, entre 1945 e 2005, o intercâmbio global de bens e o fluxo de investimentos estrangeiros cresceu de forma espetacular, a taxas superiores ao crescimento das economias, e favoreceu a retirada de milhões de pessoas da pobreza.

Com o desencadeamento da crise dos subprimes, em 2008, esse crescimento do fluxo de bens, no entanto, foi interrompido. Conforme estimativas da OMC, o comércio mundial apenas cresceu 1,7% em 2016, inferior à expansão econômica global (2,2%), e o quinto ano seguido em que o fluxo de bens cresceu abaixo de 3%. Como agravante, o plebiscito a favor do “Brexit”, a recente retirada dos Estados Unidos da Parceria Transpacífico (TPP) por decreto presidencial e as ameaças de políticas protecionistas pelo presidente Donald Trump sugerem crescente hostilidade à globalização e o fim do paradigma de produção fragmentada em cadeias globais de valor. Embora esses prenúncios pareçam bastante desalentadores, é provável que a redução no dinamismo do comércio global apenas expresse parte das tendências e das alterações na economia global.

Enquanto o intercâmbio de bens entre os países vem perdendo vigor, diversas mudanças nos padrões de consumo têm aumentado a relevância do comércio de serviços e de produtos tecnológicos intensivos em serviços, que requerem fatores como softwares, design, marcas para agregarem valor, a exemplo de smartphones. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essas transformações significam que, por valor adicionado, os serviços já representam mais de 50% do comércio, com tendência crescente na próxima década. Essa provável maior importância dos serviços deve ser reforçada pela ascensão da economia digital, que está criando oportunidades para novos modelos de negócios.

Segundo um estudo da consultoria McKinsey, entre 2005 e 2014 o fluxo global de dados cresceu 45 vezes. Com a expansão da infraestrutura de conectividade e do modelo de código aberto de software, além de menores custos de computadores e de tecnologias relacionadas, esse fluxo deve aumentar em mais nove vezes até 2021.

Fontes: TeleGeography, Global Bandwidth Forecast Service, McKinsey Global Institute analysis

Embora esse acelerado crescimento do fluxo de dados tenha suscitado preocupações em relação ao risco de “protecionismo digital”, o controle do fluxo global de dados e do intercâmbio de serviços pela economia digital é mais difícil de ser implementado. Diferentemente do caso das teorias clássicas de comércio e das propostas de taxação de importações de bens e componentes, o estabelecimento de impedimentos ao comércio digital, inclusive de medidas de censura e de regulamentação dos direitos de privacidade, é uma questão bem mais complexa. Visto que dados podem ser gerados, armazenados e acessados em qualquer lugar, políticas de protecionismo que empregam uma visão fundamentada em termos de território e fronteira nacional, como as barreiras econômicas sugeridas pela administração Trump, tendem a ser menos eficazes.

São justamente as tendências da economia digital e as considerações no que se refere ao protecionismo que levaram 12 países do Pacífico a negociarem novas normas de comércio de serviços e padrões para o fluxo internacional de dados com vistas a alcançarem vantagens competitivas. Apesar de os Estados Unidos, surpreendentemente, terem renunciado à possibilidade de cimentarem seu domínio mundial na economia digital, os demais Estados-parte parecem ter reconhecido a oportunidade de seguir adiante com a TPP. Uma possível continuidade do TPP permitirá que economias dependentes de exportações, como o Japão e a Austrália, dinamizem seu comércio em um momento em que o intercâmbio de bens apresenta seu pior desempenho em décadas. Também proporcionará a opção de que outros países da região, a exemplo da China e da Coreia do Sul, se juntem ao acordo e de que os Estados Unidos, eventualmente, voltem a ser parte do acordo.

Daniel Köhler Leite é bacharelado em Economia na Universidade de Munique, mestrando em Economia na UnB e secretário executivo do Gabinete da Embaixada dos Emirados Árabes Unidos em Brasília.
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